quarta-feira, 23 de janeiro de 2008

Hoje decidi sentir saudades


Hoje eu decidi sentir saudades. Decidi. Pelo puro prazer de sentir o nariz quase queimar, quando as lágrimas vêm-mas-não-vêm, na profunda melancolia de uma face entristecida.
Mas fui eu quem resolveu sentir saudade, pelo próprio risco desse sutil desespero. Da mesma forma de quem sai com os pés descalços, no meio de temporal, só pra ter a sublime aflição de que um raio possa cair bem perto. Ou pelo impulso quase insano de comer muito chocolate, e dizer a si mesma que algo bom acontecerá no centro do córtex cerebral, e, que, a Adrenalina se elevará e a ocitocina vai fazer a “batucada dos apaixonados hormônios”. E com todas essas vantagens, de nada valem as calorias ingeridas. A desculpa vale pelo sentimento do erro justificado. E como faz bem (e mal) esses justificáveis erros.

Saudade também é mastigável, quase comestível.
Solidão é coisa que se aprende a ter. Saudade não, saudade é algo que se cultiva na pele, na íris.
Por isso, hoje, não acordei já sentindo saudades. É madrugada, e de repente, pulei dos braços carinhosos de Morfeu e escolhi impetuosamente, padecer de uma tristeza doce. Juntei as fotos, aquelas do álbum com capa de papel reciclado, e espalhei-as sobre o tapete. Fiz quebra cabeça do teu rosto... Separei pedaços pequenos de papel branco e desenhei, em cada pedacinho, um resquício do teu sorriso. Os teus olhos eu fiz de contas, coloridas, por não ter aqui a exata cor sublime que se espalha pela tua íris incandescente, que permanece num eterno questionar de decisões. E indecisões.
Reabri os nossos livros, escancarei-os, (antes não o faria para não desperdiçar teu cheiro) e passei angustiada, página por página, absorvendo o pouco que restara do aroma de tuas mãos. Muito se perdeu na poeira das memórias, e outro tanto, está mortalmente soterrado embaixo de camadas de mofo, que se instalaram sem minha permissão na seqüência das recordações. Mas, não desisto. Eu ainda quero sentir mais e mais dessas ausências maltratáveis.
Rabisquei teu nome nas portas do armário novo com o meu batom mais vermelho.
Declamei poesias, com teu sotaque explícito, no meio da sala de estar.
Vesti-me de melancolia e dancei, abraçada com o vento, o primeiro maracatu que consegui lembrar... E percebi que as mãos eólicas são frias no meio da madrugada fugaz.
E quando a dor, lascivamente, rasgou a camisola das minhas agonias, pude enfim dormir. Como se a saudade fosse um cachorro mansinho, que dormisse sorrateiro, ladrando baixo, breves sonhos ao pé da minha cama.

E reencontrei com o vento, os maracatus, os poemas e sorrisos. E nada mais doía

Mas, não fui sua nessa noite. Fui minha, toda minha. Fui o que desejei ser, fui saudade. Dolorosa e insana, como deve ser essa sensação destruidora de que falta a própria metade.

Só.



(Jessiely Soares)

domingo, 20 de janeiro de 2008

Ciclos



*

O Sol subiu lento na enseada, inundando de luz as sombras. Astros reluzentes nessa hora são apenas pontos perdidos e sem cor.

Imagino-a: Passos mais lentos, mãos mais enrugadas. Dentro de si, os pensamentos velozes, misturados, completos.

Estrelas cadentes espelhadas em grandes guarda-sóis, desenhos de luz espalhados pelo chão, chamas que crepitam errantes nas velas do altar e seus santos de barro e gesso.

Ela, anos em rosto de anjo pálido, um corpo que pesava mediante a gravidade, cansado de juntar pedras dos descaminhos, que relutava em se entregar... Mas era hora, precisava.

Foi uma boa caminhada. Escreveu sim, seu livro. Fez, sim, muitos acordes no piano e tocou, apesar de tardiamente, seu violino.

E teve um grande amor. Um amor desses escritos à pena em livros de páginas já amareladas com grandes capas de couro marrom, marcado por rasgos, indescritíveis marcas da idade, como orgulhosos e velhos carvalhos.

Seus filhos cresceram. Os olhos que choraram muitas madrugadas febris vislumbravam-nos adultos. Sérios.

Agora, era ela.

E ele, que ainda dormia o sono dos justos.

Mas agora... Maldita sabedoria acumulada de seus avós, que permitia saber o gosto da hora final.

Sob a sombra da varanda mantinha o diário de cetim já desbotado entre as mãos. Os canteiros, que tinham nomes próprios, olhavam-na. Com a suprema inércia aparente das plantas, choravam orvalho entre flores e abelhas.

A última linha. O último gesto e o último passo.

O último suspiro de vida e o último nascer do Sol.

Ele sentiu a falta dela na cama.

Sendo assim, conseguiu, cuidadosamente, ainda beijar seus lábios, enquanto quentes.

Depois, guardou seu diário rosa, com capa de cetim desbotado, que continha sua última frase “Queria tudo outra vez...” na primeira gaveta do velho criado-mudo de cerejeira. Ali descansava o velho álbum, de páginas já amareladas com capa de couro marrom que denotavam o peso dos anos, cheio de relíquias e fotos de uma jovem com vestido branco e flores nos cabelos e de um rapaz com rosto ansioso no dia de seu casamento. E ao seu lado, aninhavam-se as fotos dos filhos abraçados à irmã mais nova, que ostentava a barriga de seu último mês de gestação.

Fechavam-se uns olhos cansados.

Mas recomeçava-se o ciclo.

(Jessiely Soares)