sexta-feira, 11 de abril de 2008

Olhos da Alma


Chove.
O Solo rachado despedaça-se ao contato com as grossas gotas de chuva que fazem da paisagem mórbida um cenário impressionista, bonito de ver.
As nuvens se formam no alto da serra e escorrem, vagarosamente, eriçando o sertanejo mais jovem e comovendo o mais idoso.
E quão grato fica o povo sofrido por aquela chuva!
Os meninos brincam nas calçadas com frascos de xampu e os homens sorridentes tomam pinga. As mulheres pousam calmas à varanda e, ora ralham com os filhos, ora sorriem dos maridos.
Os mais idosos aninhados em cobertas, deliciam-se com a paisagem, enquanto contam causos da chuva que inundou a cidade no inverno de 1988...
E naquele momento, todos olham gratos àquela santa precipitação.
Menos Maria. Ela não pode ver a chuva.
Nascida sem recursos, na brenha de mais difícil acesso, cegara ainda bebê.
Porém entre todos ali, é ela quem mais vê! O cheiro da chuva batendo no solo seco, esturricado, lança no ar o mais doce aroma que se pode desejar. E é nesse momento que ela mira o arco íris.
O cheiro sagrado da chuva carrega todas as cores do mundo na alma do sertanejo.
(Jessiely Soares)

Migração



O dia lá fora era evidentemente claro. Iluminado como as visões que sempre acometiam os seus dias: Esperanças.
Um novo chão a ser desbravado, longe das brenhas cinza do seu Sertão. Fugindo da fome estava agora embrenhado nas terras úmidas e secas do Norte, com todas as certezas voltadas para aquela terra inóspita, sem estrada e sem lei. Havia consigo apenas suas mãos e sua vontade.
Família deixada pra trás no casebre de pau a pique.
Filhos pequenos. O maior, ainda correra chorando e acenando enquanto pedia para que o painho não demorasse e não esquecesse de trazer na volta uma foto do rio. Queria muito saber como era um rio... Com água dentro.
***
Mãos enrugadas e calejadas. Filhos crescidos, carreira promissora: Médicos.
Hoje do sofrimento restam apenas marcas nas mãos e na pele, judiadas pelo Sol, pela enxada e pelos insetos.
Os grandes olhos ainda conservam o brilho de sertanejo, um pouco mais baixos, contudo, agradecidos pela força herdada na terra de seus pais, árida e seca a qual não mais pudera voltar. Ou não quisera.
Agora o vai e vem da velha cadeira de balanço embala o leve cochilo, enquanto o Sol arria no último monte azul avistável. E até lá, todas as terras são suas.
Só uma queixa povoa seus pensamentos: “Porque não ficastes para ver, Maria. Por quê?”
Enquanto a brisa sussurra um sorriso singelo.
(Jessiely)

Mutação





"... E não há melhor resposta
Que o espetáculo da vida:
Vê-la desfiar seu fio,
Que também se chama vida,
Ver a fábrica que ela mesma,
Teimosamente, se fabrica,
Vê-la brotar como há pouco
Em nova vida explodida;
Mesmo quando é assim pequena
A explosão, como a ocorrida;
Mesmo quando é uma explosão
Como a de há pouco, franzina;
Mesmo quando é a explosão
“De uma vida Severina.”
(Morte e Vida Severina - João Cabral de Melo Neto)


E o que brota no chão seco é poeira. Dessa poeira bravia, que assola o mundo de cinza e mancha as folhas grossas da Algaroba. O gado assiste a tudo, imparcial, na divina essência ruminante que transcende o entendimento humano. Seu desespero faminto é mascarado, até o dia em que, de tão magro, nem com o chocalho pode mais. Daí até a queda é questão de dias, horas.
Urubu, esse aproveitador de morte alheia, assiste a tudo feliz. Na verdade, deve ser esse o segredo da criação: a desgraça de uns alimenta a vida de outros. Já vi isso acontecer, em outros feitios.
Mas eis que a vida aqui, desfia de fato, seu rumo. Esse rumorejar dolorido, como pisar em caco de vidro, como se deixar entalar com o próprio ar que se respira, de tão ardente que é. De tão doloroso que é. De tantas vidas que traz dos lugares nos quais passa e dos aromas dos quilombos dos quais arrasta os espíritos injuriados atados ao tronco.
E de fato, segue-se por seguir. Anda-se por andar. Vive-se porque viver é mais forte. Morrer é descansar, simplificar demais. Se a barriga cresce é parido mais um filho pra esta poeira venenosa encalacrar e ver morrer, entre carcaça de gado e espinho de Aveloz.
Só a flor de cacto ainda espera pra brotar, enquanto assiste tranqüila ao uivar do vento em noite de lua, e de dia, padece sob as nuvens que passam ralas na copa azul do céu.
Enquanto a última enxada enferruja calada, escorada numa tapera, num canto. Entre barro seco e besouros.
Debaixo do Sol, com sede e fome, o sertanejo se metamorfoseia pra estar na terra. E da poeira demente, surge à cor da raça de sangue forte e olhos sofridos. A pele não interessa mais, a dor que sangra a carne opõe-se ao sonho de ser único... Por isso são irmãos, sangue engrossado na lida, na fome, na angústia. Vidas marcadas pelas mesmas mortes, dos mesmos filhos. As mesmas chagas.
Dói essa igualdade pela inexpressão. E esse é o batismo pela poeira.
A dilacerante mutação que sofre o homem para assemelhar à terra. Quem nela vive, não difere-se dela; questão de sobrevivência.
Inútil não acreditar, os filhos do sertão são cinza(s).


(Jessiely Soares)

Lágrimas Sertanejas



*

Sangrou a fé
que era pedra e espinho
na água da serra
que escorre em ruínas

________Na dor da mulher
________que rompe em prantos
________levando no colo
________a boneca, a menina

Chora o sertão
da morte constante
sem mais gado magro
sem som de berrante

________- se peixe, sem verde, sem flor adiante
________sem a reza pra virgem
________no alto do meio dia -

E a dor da fome
que um dia foi canto
morreu afogada
na chuva tardia



(Jessiely)

sexta-feira, 4 de abril de 2008

Atlas



O ruim de ter o mundo nas mãos é que há uma hora em que a gravidade age e as forças se vão.
Daí pra frente, tudo o mais é um encontro revolto de águas, um barulho doloroso de chuva e um raio fino de solidão que teima em estabelecer-se entre o fim da tarde e o começo da manhã.
Nessas horas, o perigo aumenta, há sempre vozes nos espelhos e vultos nos armários.
A angústia é a madeira do assoalho rangendo, o teto balançando com qualquer vento e tudo mais em murmúrio.
Os templos estão longe demais daqui.
Não avisto mais as ruínas.
Não há sequer quem devore meu fígado.
É quando todo o paraíso parece ópio. Quando todo medo parece fútil. Quando toda vida parece morte.
Todos os lagos não espelham mais o Céu e todas as bebidas do mundo não possuem efeito. Não, elas não me adormecem.
Nesses dias precários, não me acodem nenhum tango, nenhuma melodia... Nem soa mais a tua voz.
E perco, subitamente, o meu último risco. Do corpo inerte, despede-se o último sopro de humanidade convertido em sal.
Tudo está consumado. Caiu-me o mundo das mãos.
Sou mortal, novamente.



(Jessiely Soares)