quinta-feira, 29 de novembro de 2007

Verde





Vida sofrida.

De balaio na mão, enquanto os quatro filhos ainda dormem, Maria espalha na mesa o que tem pra se comer: Umas bolachas e um café requentado, servido na caneca de alumínio. Ruim, porque queima a boca. E um pouco de farinha de mandioca.

O marido, enquanto se veste, observa-a. Como está velha. Senta calado, para não desperdiçar nada, nem palavras. Apenas pega a caneca, engole o líquido quente... Não come as bolachas, as deixa para as crias.

Desce a serra. Enxadeco nas costas, a velha cachorra aos pés, enroscando-se, pulando, brincando com algo invisível e que o irrita. Tudo irrita. Na verdade, tudo dói.
Dói ver a esposa, que era tão bonitinha, mesmo sendo ainda jovem ter uma aparência triste.
Dói ver os quatro filhos, de barriga inchada, sonhando com coisas inimagináveis, que eles nem sabem que sonham, na verdade nunca viram nada pra sonhar.

“Menos mal”, pensou. “ Pobre ficar rico é bom, rico ficar pobre é que é triste."

Do meio da ladeira pode-se ver a plantação. O terreno árido revela elevações, pequenas covas que carregam a esperança de uma safra boa, mesmo com estas esperanças perdidas na pedra de sal. Mas ele é teimoso. Mal de Sertanejo, morre, mas morre achando que amanhã melhora.

E a chuva não pinga. O verde não chega. E ele reza. Não agüenta mais os olhos castanhos do caçula que pedem peito a mãe, já que o leite da cabra está escasso. São quatro bocas, quatro.

E ele reza, olha os olhos de Maria, que de verdes ficaram vermelhos... De Sol e de lágrimas, e isso magoa. Abre no peito uma cova maior que a do plantio.

E Maria ora. Orou até o dia em que os Anjos a levaram pelas mãos, logo depois de levarem o caçula que morreu perguntando se no Céu tinha pão.

Dizem que ela morreu de tristeza, não se sabe.

Foi a primeira vez em anos, que o verde tocou aquele o solo.

E as lágrimas que o sertanejo verteu não fizeram nascer uma flor. Nenhuma. Onde não havia nem folha triste de raiz de feijão.

O verde rasgou o peito. O chão, não.



(Jessiely)

quarta-feira, 7 de novembro de 2007

Moulin Rouge


Sentava-se todo fim de tarde no banquinho rosa da penteadeira, e observava tranquilamente o próprio reflexo no espelho.

Seu rosto, apesar do tempo impiedoso lhe conferir mais de setenta anos, não mudara excessivamente. Talvez uma ou duas novas rugas situadas na região dos olhos. Seu corpo é que já sentia largamente a força da gravidade.

Eu estava sempre por perto, nem sempre por cuidado: admiração era mais comum. E como eu a admirava!

Suas histórias mirabolantes de antigos cabarets e a certeza quase absoluta de todas as almas que seduzira.

Eu achava espetacular mirar aqueles olhos azuis que resplandeciam ao relembrar as noites de salões lotados e sorrisos regados a champagne sob a luz do Luar! Sim, estivera em Moulim Rouge entre brilhos que ofuscavam olhares atrevidos e matava de inveja as meninas comportadas da mais alta classe.

Conhecera o seu grande amor no Paradis Latin, um dos melhores cabarets de Paris. Ah!“Paradis d’Amour” Um verdadeiro hino ao amor através dos tempos”! Repetia suavemente enquanto penteava demoradamente os fios escassos, cuidadosamente tingidos de preto.

Ao fim das histórias, ela levantava renovada e saia a bailar pelo quarto a fim de alçar a sala onde já estava servido o chá.

Eu a seguia, entusiasmada.

Ela a frente em seus passos de bailarina cantando baixinho um ritmo desconhecido para mim. Eu mais atrás, atrevidamente pensando que meu tio não soubera de nada disso.

E morrera feliz, acreditando ter se casado com a menina mais recatada da região.



(Jessiely)

terça-feira, 6 de novembro de 2007

Última peraltice


-Mentirosa! - Repetia baixinho o menino, enquanto mirava os pombos na calçada. Ele, menino de classe média, morador de o sexto andar de um dos prédios da Avenida Litorânea, estava subordinado as invenções maldosas da sua babá “-Eu não fiz tudo aquilo! Nem a metade! Magoei a mãezinha... Magoei.”
A velha não tivera pena do menino. Quando a mãe dele chegou cansada do trabalho, contou os fatos e aumentou todas as suas peraltices. Sem dó. “Ele ergueu minha saia Dona Ana! E disse absurdos a um senhor que veio trazer leite!” os olhos brilhavam enquanto proferia as palavras. E ele ali, acuado.
A mãe, uma senhora calma, fitou-o decepcionada. Não disse uma palavra áspera nem o castigou. Com o semblante triste, sentou-se no sofá e disse ao pequeno danadinho: “-Estou desgostosa com você. Ouviu? Você não deveria ter feito nada disso. Confie em você e me decepcionou”.
Dito isso, pôs-se a chorar. Não pelas travessuras inocentes do pequeno, mas pela dolorosa partida do marido que agora, deveria estar nos braços da sua amiga, sua melhor amiga. "Ah Joana, eu ficarei melhor sem ele." Disse Dona Ana olhando a babá e referindo-se ao traidor que partira naquela manhã, mas não sem antes retirar todas as economias da conta conjunta.
Estava à beira da ruína. E agora, sozinha.
Mas, o menino não compreendeu. Debruçado na sacada, sentia todo o peso do mundo em seus ombros. Não poderia existir dor maior: Decepcionou a mãe! Quão perverso tinha sido para conseguir decepcionar àqueles olhinhos tão azuis.
“Certamente ela chorará a noite inteira, certamente não irá conseguir comer nada e sua barriga vai doer de fome, e tudo culpa minha... E da babá mentirosa!”
Pensou impetuoso.
“Não posso continuar assim. A mãezinha não merece” e passando a perna sobre o gradil lançou um passo a frente. “Ela ficará melhor sem um menino peraltinha para decepcioná-la.” E um passo a mais... “Eu te amo mamãe.” Mais um passo...
Ouvira-se um barulho seco
E uma revoada de pombos.

Findara-se à tarde.
(Jessiely)

Dia de chuva



Não suporto dias de Sol.
Nesses dias fico mais vulnerável, mais entregue. Preciso ter um rosto falsamente feliz e estar normal em meio aos normais.
Manhãs assim eu tenho que ser simpática com a vizinha chata, com o primo metido e com aquela menina que roubou meu namorado quando cursávamos o primeiro ano do ensino médio. Eu sei, faz tempo, mas ainda não gosto dela.
As pessoas passam e me olham nos olhos, me vêem por dentro! Sinto-me frágil, inconsistente, descoberta. Fico inútil diante das visões alheias sobre a minha incompetência em ser um Ser humano.
Porém, hoje não.
Hoje está chovendo.
Ruas molhadas, trânsito lento e árvores que balançam como se agradecessem as grossas gotas de chuva que caem e desfiguram a paisagem.
Todos na cidade, levantam de suas camas quentes reclamando. Menos eu.
Já escolhi a minha roupa mais escura e o guarda chuva preto, sairei absurdamente feliz e ninguém, nenhum daqueles transeuntes me notará. Hoje eles estarão imersos em suas próprias impossibilidades.
Enquanto eu seguirei, perdida em minhas paixões inconseqüentes e estarei invisível entre os normais.
Serei, indescritivelmente, eu.



(Jessiely)

sábado, 3 de novembro de 2007

Genialidade.





Na súbita fúria assumida, ele destruiu o ateliê. Não restaram telas, tintas, nada! Tudo se foi pelos ares tamanha raiva que empregara em cada golpe desferido.

No fim, já sem forças e completamente atordoado olhou longamente as paredes: Tudo estava completamente novo! Diversos tons e texturas! Até que enfim descobrira um novo matiz com aquele descorado amarelo ocre quando respingado com aquele semi-inútil azul cobalto.

Sentiu-se por fim, completo.
Redesenhara toda uma vida falsa, destinada apenas a seguir os traços que outros pintavam.

Suspirou aliviado: - Estou em cores, vivo!

Não era mais o mesmo homem. Não pintaria mais simples retratos sem expressões, sem vida, o lugar - comum.

Não era mais igual, nunca mais seria: A arte tomara conta de suas veias.

Achara, finalmente, seu toque de genialidade.


(Jessiely)

sexta-feira, 2 de novembro de 2007

Por teus olhos castanhos


O dia está seco
O Sol quase mata quem atravessa o leito do que antes fora um rio.
(Caminha-se por toda a extensão rachada e marrom-acinzentada do que antes era um límpido afluente azul.)
Os transeuntes apressam o passo.
Param debaixo dos Umbuzeiros como se quisessem retomar as forças para persistir na caminhada.
Recorrem às sombrinhas.
Algumas senhoras abanam as saias, na esperança que algum vento atrevido diminua-lhes o calor.
E necessitam. O calor está de matar lá fora.
Eu aqui vejo tudo pela janela, debruçada sobre uma brisa que vem não sei de onde.
Porém, se teus olhos castanhos me fitassem e me pedissem para ficar alheio a tudo e te admirar na calçada, eu ficaria sob o Sol a pino...
E teria frio hoje.
(Jessiely Soares)

quinta-feira, 1 de novembro de 2007

Felizes... Até certo ponto.



Conheceram-se nos anos 80. Paixão fulminante, daquela que cega. Prova disso é que o namoro começou de forma bem rápida: após duas semanas de paquera.
Depois de combinar com os pais dela, ele obteve permissão para visitar a casa e namorá-la formalmente na sala, seguidos a cada movimento pelo irmão pequeno dela.
Descobriram-se aos poucos, em longos olhares... Perceberam satisfeitos que eram iguais em tudo.
Gostavam das mesmas músicas, dos mesmos shows, das mesmas revistas. Torciam pelo mesmo time. Gostavam do mesmo lado da cama. Da mesma caneca pra café e do mesmo doce de casca de laranja. Tudo era perfeito, tudo facilmente se encaixava.
Casaram-se, como não poderia deixar de ser. E foram felizes, até certo ponto.
A falta de diferenças começara a incomodar. Era sempre assim... Sempre a mesma posição na mesa, o mesmo jeito de fazer amor, as mesmas cores nas paredes. O mesmo horário do beijo, o mesmo horário do jantar, o mesmo programa na televisão. Ele no sofá, ela na cadeira de balanço.
Por um olhar, eles se entendiam.
E não brigavam.
E não se queixavam.
E não conversavam. Eles nunca conversavam.
“...Nós dois temos os mesmo defeitos, sabemos tudo ao nosso respeito...”.
E foi assim, simples.
Na manhã fatídica ela acordou, o olhou, e questionou-se: “O que fiz da minha vida?” Ele abriu os olhos e entendeu exatamente o que ela pensara naquele incomum olhar matinal.
Ergueram-se e o beijo (rotineiro) de bom dia não existiu. Nem o café na caneca marrom que era exatamente igual à dela. Não, nessa atípica manhã ele fez as malas e foi embora. Enquanto ela, observando o carro que se afastava na esquina, cantava sozinha...
“...Nós dois temos os mesmo defeitos, sabemos tudo ao nosso respeito...”.
(Jessiely Soares)