sábado, 31 de maio de 2008

Pacto de amor sem fim.




Não se engane, esses olhos verdes nem sempre me refletem e a noite ainda não me revelou. Tenho mistérios guardados a sete chaves, dentro de uma velha garrafa, na minha caixa de sapatos e recados escondida no fundo do armário de cerejeira.

E te conto onde me guardo porque não tenho medo de que me descubras. Você não subiria até meu sótão apenas para me ler, não iria tão longe por mim.

Um dia desses, te narro meus últimos feitos e você vai sorrir. 
Pouco me importa, não vim até aqui pra te encontrar nem pra beber do seu uísque. Eu vim porque gosto do seu cabelo assanhado e do teu olhar de menino - E pelo fato de que te pinto da forma que eu quero, e na verdade, bem verdade, eu sempre arranco esse teu cd de jazz e coloco outro. Qualquer outro, mas arranco esse. Também te jogo um brinco, uma tatuagem. Uma camisa florida. Você canta Elvis pra mim e eu danço.

Mas, de tudo, o que mais me fascina, é quando você, rendido, encosta seu pé quente no meu pé gelado, e me tira o vinho das mãos. Me aconchega sutil no canto da cama, da mesa, do sofá.
 
Me pede pra ser poetisa e te dizer uns versos bem clichês... E eu digo.
Então, sinto teu medo palpitar na minha mão e adormeço.
Parto. Retorno.
Por teu cabelo assanhado e por teu olhar de menino.

No dia em que você crescer, não volto aqui, terá partido toda a graça desse desencontro.
(Jessiely Soares)

sexta-feira, 30 de maio de 2008

Da noites que morrem.




Quem poderia acreditar que a noite de fogo, não nasceria?
Lá fora a lua jaz em um aquário e todas as estrelas choram. Apagou-se a luz.
Quem agora, abriga o seresteiro? A chuva cobre sua face, molha o violão *"...O Perfume que roubam de ti, ai..." ele tem o rosto exposto ao sereno, sem saber para onde correr o olhar.

Acima de si, Sol, dia azul e chuva.

- Morreu - bradou o bêbado - a luz do seresteiro! A amante do poeta!

Tomado por um momento de lucidez pavoroso demais para ele, sentiu, dolorosamente, o peso daquela súbita e maldita sobriedade.

Deixou, então, cair a sua garrafa sob a ponte para depois ir afogar-se junto. Não cabe sobreviver a luz do Sol eterno - não é seu habitat. É filho dos cabarés e do vício. Não se pode alimentar a morte debaixo dos olhos durante o dia. Com tanto azul, ela morre de tédio.

Morte gosta é da luz amarela dos postes, na rua banhada de luz de luar
E morreu a lua.
Morrerão os seres.
E não se ouvirá mais chorinho, não se saberá mais de estrelas, ninguém mais verá o seresteiro.

Partiu a noite, bem na noite em que eu estava de partida para os seus braços.

(Jessiely Soares)





*"...O Perfume que roubam de ti, ai..."
(As Rosas não Falam, Cartola)

quinta-feira, 29 de maio de 2008

Reencontro




Vicejava o jardim
Feita de pedra e conhecida por ser mal assombrada, erguia-se imponente a casa da esquina.
Nove cômodos, sem incluir o oitão. A moradia abrigava grandes janelas em arco donde pendiam velhas cortinas gastas e descoradas.
Na parede do muro, imperavam samambaias e outras trepadeiras.
Ostentava, debaixo da Figueira, dois bancos iguais de toras, sobre o chão, colorido de folhas secas e forrado de grama baixa, sorriam pequenas flores feias.
E foi assim, num dia de Sol à meio céu, em que ela se reaproximou da casa. Coração pulava na palma da mão, por não ter moradia no peito.
Sentiu de novo o cheiro de canela e de madeira. Viu a antiga cor das pitangas, na única pitangueira sobrevivente, e o suave balançar dos lençóis nos varais.
Caminhou em passos firmes por toda a casa, mesmo sem ser convidada a entrar, mas, agora, não havia mais a cristaleira com as fotos da família. Nem a louça inglesa.
E quem seriam aqueles meninos? Não recordava de tê-los conhecido.
Só um cantinho guardava pequenas memórias. Viu então sua cama, sua penteadeira, seus dois livros de Machado de Assis e o retrato de sua avó, sorrindo um sorriso de xale.
E por um momento nem parecia que era noite em seu destino, nem parecia que tinha partido sem razão, nem parecia que não tinha deixado saudades.
Por um momento breve nem parecia que tinha morrido.
(Jessiely Soares)

quarta-feira, 21 de maio de 2008

Futuras lembranças - I



Um dia, quando os teus anos começarem ser cerceados pela vida, e teus olhos tiverem o brilho do arrebol e o peso de uma existência, teus passos não serão tão firmes e tuas palavras, mais baixas, ditas em um sussurro quase inaudível.

Teus erros serão mais amenos, tuas distâncias menores, teus cabelos terão a cor da brisa... Aninhada nesses fios, de constante embaraço esvoaçante.

Os teus sorrisos serão mais largos e um pouco mais abertos, quase bobos. Haja visto que os descendentes estarão sempre fascinando-nos com suas novidades - esses meninos de hoje - coisa que certamente disseram também de nós, em algumas décadas passadas.

E os teus desejos serão simples.
E as tuas lembranças, páginas em sépia.

Então, eu sentarei ao teu lado, lá no alto, no chalé da montanha e observarei contigo adiante na aléia o último passeio do girassol, o sorriso matreiro das marias-sem-vergonha, e o nascer da Lua Cheia, por detrás dos eucaliptos.

E teu olhar terá, ainda mais, o peso da vida, da existência e das muitas luas passadas.

Mas tua alma, de uma cor verde-água, semi-transparente, terá a idade do amor.

Estará presa à minha mão, a sua. Mesmo quando a vida vier aparar as arestas dos arredores dessas nossas montanhas, recortadas pela mão de um artista talentoso.

Será o último selo do álbum do destino, mas minha mão não se desviará da tua.
Nem mesmo nesse momento.


(Jessiely Soares)

Futuras lembranças II

Dos sonhos nasceram os filhos... Um a um. Dois. Quisera Deus que não fossem gêmeos, quisera. 
Acostumaram-se cedo, ao rosto estampado do pai entre os lençóis nos finais de semana e aos reclames costumeiros da mãe, pela sandália que ficava no corredor e pela camisa estendida nas costas da cadeira... 
Adormeciam aliciados pelo velho costume do rádio ligado do lado da cama. Que também seriam saudades, da terra amada mas deixada pelo pai, que há tanto havia se acostumado a serras e frio.
Pedaços de vida espalhados pela casa.
O campo sorria-lhes, as praças, os bancos, as fotografias e os brinquedos. O circo armado com lençóis, as histórias nas noites de chuva, e o beijo deixado na cama antes de caírem nos braços dos sonhos.
E os poemas.
No quarto, depois do sono, depois da vida, depois do jantar, depois do curso. Eram acalentados pela voz e pela poesia, como se nada mais lhes preenchessem as artérias. Dessas noites, azuis, restariam fotografias em preto e branco e algumas histórias.
Nas manhãs de carnaval eram, os filhos, coloridos pelos velhos vestidos da mãe, forrados de cetim e pintados de palhacinho e bailarina. 
Nas madrugadas, eram calor sob o lençol, abraço ternos de aconchego e de carinho. Eram pais e filhos. Pelo resto de seus caminhos.
Enquanto o cheiro do café se espalhava pela casa e pela rua, e os pães, assavam num misto de ventura e vida, as manhãs tomavam forma. Os vinhos envelheciam na adega a espera das formaturas, dos aniversários, das angústias e dos netos que nasciam, nasciam, e cresciam cantando hinos à imensidão e às verdades, como gemas raras que se pronunciam no peito.
E, nas mutáveis manhãs de inverno, a cerração cobria a serra. A vida, não.
O eterno ainda fumegava nos empoeirados móveis antigos da sala de jantar, no vazio dos corredores e nas velhas histórias, com os netos no colo.


(Jessiely Soares)

Futuras lembranças III


“... Céus de flores vêm descendo...”
...E então, amor, um dia seremos novamente só nós dois. Não mais as madrugadas enrugadas sob o teto, nem as manhãs coloridas de carnaval... Seremos dois, infinitos, no ponto mais extremo de um cometa.
Das figuras mais distantes sob a mesa, quando éramos dois antigos sonhadores, restarão os símbolos, os afagos e as cumplicidades... Coisas que pouco cabe num álbum de retratos, mas que se encaixam com maestria numa luz néon no palco de doloridas saudades.
Seremos astros de conversas familiares e de sorrisos de filhos e compadres.
Mas, seremos unicamente depois do último anoitecer da estrela dessa vida.
E então, sim, seremos só nós dois. Sentados a uma pedra no alto de uma alameda de tulipas, tal qual Amsterdã, enquanto tudo o mais se contorce em brisa, brisa de rio, brisa que canta os últimos cantos gregorianos sem sonhos nem sons.
Nessa hora, enquanto a noite desce e cai, num céu de cem luas, teremos o mundo aos nossos pés. Enquanto lá, em nossa antiga casa, ainda fumega o café e as lembranças de tudo que foi nosso, narrado em lágrimas aos nossos pequenos herdeiros de sonhos...
- Ah, meus filhos, quando os seus avós eram vivos...

(Jessiely Soares)